quinta-feira, 3 de julho de 2008

CONVERSA ENTRE POLÍCIAS…

Quando, em fins de 1983 (já lá vão cerca de 25 anos) eu e alguns colegas, concluído o curso de formação na Escola, fomos colocados no Núcleo de Estágio a funcionar na então S.C.I.T.E./C.I.C.D., instalada ao fundo da Rua Conde de Redondo, ali fomos encontrar um grupo de investigadores policiais cujas características, individuais e de grupo, e a forma de trabalhar, nos levou (pelo menos à maior parte de nós) a ali querer ser definitivamente colocados.

De facto, a motivação e a dedicação ao serviço, o entusiasmo e alegria com que desempenhavam as suas funções, a competência e o profissionalismo que demonstravam foram, para nós, recém formados na Escola do Barro, a certeza de que a profissão que então iniciávamos se traduzia numa actividade plena de realização e numa carreira magnífica e com um futuro radioso.

Grande parte desses colegas eram sensivelmente da nossa idade, pouco mais antigos que nós, do curso imediatamente anterior e, assim, com o respectivo estágio recentemente terminado.

Entre eles estava o Gonçalo Amaral. Talvez com mais cabelo que agora e, eventualmente, um pouco menos pesado. No resto, era igual. Já na altura nos surpreendia a sua entrega à profissão, a competência que demonstrava, a segurança com que trabalhava, a coragem com que ia a todo o lado e enfrentava todo o tipo de situações e de adversários. Da mesma forma, era notória a boa disposição com que enfrentava as contrariedades e as adversidades da função, bem como a tolerância com que encarava as brincadeiras, às vezes irreverentes de um ou outro colega (e eu que o diga, que a consciência me acusa de o ter sido, não poucas vezes).

Posteriormente o Gonçalo viria a trabalhar em Faro e em Ponta Delgada. Sempre com a disponibilidade pessoal e a capacidade profissional que lhe são características. E em todas as inúmeras valências que revestem hoje o trabalho de um investigador da Polícia Judiciária. Investigando homicídios ou recolhendo informações sobre redes criminosas organizadas. Analisando documentação relativa a complexas movimentações financeiras ou capturando indivíduos perigosos. Sem fugir ás dificuldades nem esmorecer face às contrariedades. Dando a cara e indo à luta. Sempre.

De novo em Lisboa e no combate ao tráfico de droga, foi o Gonçalo nomeado, ainda como Agente, para chefiar uma Brigada de Investigação na D.C.I.T.E. Quem estava, nessa altura, nesse departamento, lembra-se que os resultados conseguidos por essa Brigada, sob a chefia carismática do Gonçalo Amaral, logo ultrapassaram a média das estatísticas. Os números conseguidos por si e pelos seus homens, quer quanto a indivíduos detidos, quer quanto a produto estupefaciente ou aos bens e valores apreendidos, quer, mesmo a condenações conseguidas em Tribunal marcaram uma época na D.C.I.T.E. e constituíram um exemplo.

Eu sei. Lembro-me bem. Estava lá.
Acumularia a chefia da Brigada com a condição de aluno universitário. E a sua forma característica de chefiar, sempre directa e frontal, num estilo de liderança permanente e plenamente assumido, sempre presente e sempre disponível, não o impossibilitou de, no mais curto espaço de tempo permitido, se licenciar em Direito. Não obstante a sua formação anterior ser de Engenharia.

Voltámos a encontrar-nos no curso de promoção a Subinspector. Uma vez mais o Gonçalo deu mostras da sua notável capacidade de trabalho, pois que fez este curso, intensivo e exigente, em acumulação com a chefia da Brigada de Investigação. Patente ficou, também e uma vez mais, a sua significativa capacidade de estudo, tendo concluído o curso em primeiro lugar entre 99 colegas.
Viria, posteriormente e na sequência lógica e natural da sua carreira profissional e do seu percurso de vida, a concorrer a Coordenador de Investigação Criminal e, como era de esperar, era promovido àquela categoria funcional pouco tempo depois.

Depois…
Bem, há cerca de um ano, todos nós assistimos, estupefactos, a uma espécie de espectáculo até então inédito entre nós. Como nos Autos de Fé do passado, certa comunicação social (principalmente inglesa, mas infelizmente não só essa) “derreteu” na praça pública um Homem da Polícia Judiciária portuguesa. Quadro superior da carreira de Investigação Criminal. Colega nosso e amigo de muitos de nós. Um assassínio de carácter como nenhum outro funcionário desta Casa tinha sido vítima até então. E porquê?
Porque, como sempre foi seu apanágio, o Dr. Gonçalo Amaral, Coordenador de Investigação Criminal da Polícia Judiciária, foi à luta, empenhou-se, assumiu, enfrentou, corajosa e decididamente, as dificuldades e as contrariedades de um caso de serviço muitíssimo complexo e de contornos ainda, e quiçá para sempre, indefinidos.

Talvez pela primeira vez na História da Polícia Judiciária, um investigador é exposto na praça pública e a sua vida privada devassada. Apenas por estar a investigar um determinado caso suspeito. Por estar a trabalhar. Talvez o Estado Português, a Administração Pública, a nossa Polícia Judiciária, devessem ter mecanismos para proteger os seus representantes em situações como esta. Para os resguardar no exercício da sua actividade profissional em proveito do Serviço Público. Talvez todos nós, colegas de profissão, nos devêssemos ter assumido e, fazendo jus ao famoso, tradicional e tão apregoado “Espírito de Corpo” que dizem característico da nossa “Casa”, nos devêssemos ter, de alguma forma, manifestado em apoio do Dr. Gonçalo Amaral.

Nada disso aconteceu. O Gonçalo ficou sozinho.
Se esta estratégia pegar, amanhã, face a arguidos poderosos e bem relacionados, poderão ser outros investigadores a sofrerem na pele esta provação. Poderá ser qualquer um de nós. E isso pode, de alguma forma, significar o fim da investigação criminal. Pelo menos da maneira como nós a encaramos e a desenvolvemos.

Que este caso nos sirva de reflexão. E de exemplo. E nos permita criar formas de evitar que se repita. A própria ASFICPJ deveria, talvez, analisar, séria, conscienciosa e exaustivamente, e de forma serena e construtiva, toda esta situação. É, também, sua obrigação.

Amigo Gonçalo, lamento sinceramente a tua saída da Polícia Judiciária, que me parece demasiado precoce porque admito que mais poderias dar à causa da Sociedade, da Justiça e do Serviço Público. A nossa “Casa”, para além disso, não dispõe de tantos recursos, em qualidade e quantidade, para se dar ao luxo de os não rentabilizar ou, pior ainda, de os deixar desperdiçar.

Resta-me, face à realidade dos factos, agradecer a tua amizade e desejar-te as maiores felicidades e os maiores sucessos na nova etapa da tua vida que agora decidiste iniciar.

Lisboa, 03 de Julho de 2008,

João Fernandes Figueira
Associado da A.S.F.I.C./P.J. nº. 711

13 comentários:

Anónimo disse...

Afinal ainda há gajos com tomates...
Sim senhor.

Anónimo disse...

Estimado companheiro


Subscrevo na íntegra...
Não somo assim tantos que nos possamos dar ao luxo de desperdiçar recursos.

Anónimo disse...

Acomodem-se

Anónimo disse...

Deêm-lhe a cruz de guerra e já agora, um carrito para se orientar e um cartão frota. Um homem tão bom, que até pagava para trabalhar

Anónimo disse...

Desejo-lhe muitas felicidades e sucesso na sua "nova" vida, fora dessa instituição que serviu durante tantos anos... Esperando ter um dia, a oportunidade de voltar a encontra-lo.

Obrigado João Fernandes Figueira pela homenagem ao colega e amigo Gonçalo Amaral.

G.B.

Anónimo disse...

Concordo, aprovo e enalteço o G.A.que foi sempre um Polícia com "P" grande.Agora aquela parte do "espírito de corpo", lembro-me vagamente disso à vinte anos atrás, quando entrei para a "casa", acho que isso ainda existia...

Anónimo disse...

Companheiros

Depois de ver a entrevista e de lhe fazer a análise, correlação e síntese, os elementos objectivos e subjectivos indiciam que… todos nós, sim todos, merecemos mais que aquilo que deram ao Gonçalo. Eu sei, quando for a minha vez nem umas palmadas nas costas, mas também não espero outra coisa. Ingrata CASA esta que nos trata assim…

Anónimo disse...

caros colegas
permitam que lhes dê um conselho.Não façam as coisas à espera de que alguem vos agradeça, façam-nas apenas pelo gozo que lhes dá fazê-las. Se vier reconhecimento é ganho se não, o gozo já é suficiente

Anónimo disse...

caros Srs/sras (parece que não há muitas aqui)

Não sou das forças policiais, o mais perto que já estive foi como professora.
Permitam-me juntar a minha voz à vossa e dizer-vos que nunca sereis esquecidos.
Irão certamente existir outros Gonçalos Amaral, injustamente desapoiados, mas nós que dependemos de vós para nos defenderem, nunca vos esqueceremos.
Bem hajam.

Cláudia disse...

Olá a todos.
Apenas para dizer que achei o texto tremendamente bonito. Desconhecia este sítio e fico contente por tê-lo encontrado. Sou um cidadã comum, de 29 anos, de Viseu e nada tenho a ver com a PJ. Não tenho família nem pessoas próximas em nenhum dos ramos da nossa polícia. Mas também eu fui tocada por este caso e pela coragem e coluna vertebral demonstrada pelo Dr. Gonçalo Amaral. Esse é, aliás, o único aspecto com o qual não concordo no texto. O Dr. Gonçalo Amaral não ficou sozinho. Há muitos, muitos meses que luto contra a maré na blogosfera. Primeiro nos fóruns de alguns jornais ingleses, quando estes ainda permitiam a liberdade de expressão. Quando isso deixou de ser possível, em blogs. Este, cuja morada aqui vos deixo, é para todos vós. Foi para isso que foi criado. Para que saibam que não estão sós.
Peço desculpa por ser em língua inglesa, mas como devem compreender, se assim não fosse, perderia a razão de ser. Obrigada a todos vós por tornarem o nosso país mais seguro todos os dias, por arriscarem a vossa vida pela de quem não conhecem e, agora, até mesmo por se arriscarem a ver a vossa vida privada devassada e mentiras atrozes escritas a vosso respeito. Bem hajam.

http://proud-of-the-pj.blogspot.com/

Anónimo disse...

Podem não ter o apoio do Estado e das vossas instituições, mas podem ter a certeza que muitos são os cidadão "comuns", mães, profissionais, etc. que muito vos respeitam, muito vos admiram e muito vos agradecem o vosso empenho no dia a dia. Sabemos que fazem sacrifícios, bem como fazem as vossas famílias que por vezes estão afastadas dos senhores (e senhoras) quando estão a trabalhar dias seguidos.
Pouco posso fazer para vos apoiar excepto tentar utilizar o meu voto da melhor forma possível, manifestar-me quando adequado e ensinar aos meus filhos a respeitar a lei e as poucas instituições do nosso país da qual ainda nos podemos orgulhar - a Polícia Judiciária. Para vocês, para o Sr. Gonçalo Amaral, que é um grande homem, deixo o meu mais sincero agradecimento. Tivessemos mais homens e mulheres assim, e tinhamos um país muito melhor. Bem Hajam

Unknown disse...

Un lector de mi blog me envio este enlace. El post es magnifico y seguramente esta escrito desde el corazon.

Me encantaria conocer personalmente al Señor Amaral, pero como eso no es posible le mando desde aca un abrazo y le transmito mi admiracion, por ser el unico personaje integro de esta historia.

Anónimo disse...

Mais um blogg a favor da PJ o que muito me alegra e conforta. Nunca são demais os apoios a Gonçalo Amaral, que não conheço pessoalmente mas a quem admiro profundamente pela coragem, honestidade, verdade, frontalidade, profissionalismo. Espero estar no lançamento do seu livro e lê-lo de imediato. E que sirva de contraponto aos lobbyes do poder, e que fazem comentários tão vergonhosos e nojentos como Miguel sousa tavares, hoje, no expresso.
Por isso, todo o meu apoio e admiração.
ana